«O encontro fortuito com o "outro" é a pedra de toque da cidade democrática (1). A apropriação tecnocrática do meio urbano através de um pandemónio de sinalética, progressiva fragmentação pelas infra-estruturas rodoviárias e ocupação selvática pelo automóvel, põe em causa o pouco espaço cívico que nos resta. Uma das formas mais simples de medir a saúde de uma democracia numa sociedade é através da dimensão dos seus passeios.
A qualidade dos espaços de encontro em sítio público permite a verdadeira interacção entre gerações, classes sociais e comunidades. Sem eles o cidadão isola-se, deixa de se sentir parte da “coisa pública” e deixa de participar em “causas comuns” (2). Sem eles a cidade torna-se mais pobre e a democracia vítima de arbitrariedades que gradualmente dirigem o espaço público para o uso da máquina e não das pessoas. È a morte do “Homem Público” demonstrada todas as eleições pelo aumento da abstenção e a progressiva, mas inexorável erosão da esfera pública, empurrando-nos para a ética do “salve-se quem puder”. Nos subúrbios da área metropolitana em que quase todas as viagens são realizadas em automóvel e o peão mal consegue atravessar as ruas, é difícil conseguir que os condóminos desçam dos seus andares para participar nas poucas reuniões que ainda se realizam.
Segundo o famoso estudo realizado por Appelyard (3) nas ruas de São Francisco, o número de interacções sociais numa rua está directamente relacionado pelo número dos automóveis que por lá passam. Dizendo de outra forma, a nossa solidão aumenta com o número de automóveis à nossa porta. Os peões são os “glóbulos vermelhos” da cidade, caso deixem de percorrer e irrigar uma rua ela entra em dificuldades, degradando-se, tornando-se insegura, gangrenando e finalmente morrendo. Sem peões a rua perde o seu carácter simbólico de “partilha” - um território que os cidadãos sentem que lhe pertence e têm orgulho e responsabilidades. Sem peões os residentes tendem a tratar menos da rua, das suas árvores e flores. A velocidade dos automóveis afugenta os peões, sem peões a velocidade dos automóveis aumenta. A rua sem “olhos” torna-se insegura, prosseguindo assim o seu círculo de morte: quanto menos peões há, menos peões haverá.»
(1) Richard Sennett, The Conscience of the Eye - The Design and Social Life of Cities, Alfred A. Knopf, New York, 1991.
(2) Jürgen Habermas, The Structural Transformation of the Public Sphere, MIT Press, Cambridge, MA, 1991.
(3) Appleyard, D. Liveable Streets. Berkeley: Univ. of California Press, 1981.
* Um excerto do trabalho "Os peões, os passeios e as “causas comuns”" de Mário J. Alves - mariojalves(arroba)gmail.com