E nada haveria de errado neste investimento privado se a rentabilização de tal investimento não entrasse em conflito aberto com o interesse comum em termos de conservação da natureza e saúde pública.
A imagem de um Ambiente como área de eleição em sociedades desenvolvidas tem sido usada abusivamente como meio de propaganda. Nenhumas objecções a isto teria, caso não estivesse essa propaganda, instrumentalizada por quem detém os actuais negócios do ambiente e, caso fosse essa propaganda, o verdadeiro reflexo de modelos de desenvolvimento compatíveis com a defesa do ambiente.
O negócio ligado ao ambiente, diz-se… é uma área em franco florescimento. No entanto verifica-se que tal florescimento colide repetidas vezes com a própria defesa do ambiente. Mas então se o negócio é o ambiente, valerá a pena estragar o pote de ouro? Uma analogia que pode ajudar a entender que tal é possível é o exemplo bem conhecido do negócio ligado às florestas. É difícil imaginar que alguém que viva das florestas possa também contribuir para a sua destruição. Também a nível mais geral isto acontece e o parente mais pobre é a conservação da natureza. Vive-se DO mas não PARA o ambiente.
As actuais preocupações ambientais difundidas através dos meios de propaganda não estão consolidadas verdadeiramente nas medidas que caracterizam os actuais modelos dominantes para o desenvolvimento. Muitos dos resultados de determinado modelo de desenvolvimento socio-económico são apenas visíveis a médio ou longo prazo, o que para o Ambiente se mostra demasiado tarde. Em geral os resultados de práticas erradas do ponto de vista ambiental só são visíveis quando as palavras já foram esquecidas. Outras vezes não são sequer visíveis pois são ocultados. Os efeitos são perversos para a saúde pública e a conservação da natureza.
As ciências da Saúde e as ciências do Ambiente têm percorrido caminhos paralelos, de costas voltadas e com raras intercepções, não existindo um trabalho científico regular para a relação entre causas e efeitos nomeadamente em matéria de poluição ambiental. Os agentes económicos responsáveis pela poluição ambiental ou fragmentação de habitats não têm sido efectivamente forçados a internalizar os reais custos ambientais das suas actividades, nem em termos de danos na saúde pública, nem tão pouco no que se refere à perda de biodiversidade. O recente desenvolvimento de estudos que estimam tais custos na área da Economia Ambiental e que sugerem a sua aplicação com base no princípio do poluidor-pagador fornecem já algumas ferramentas importantes, mas estão longe de pressionar o sistema vigente para uma responsabilização de produtores, distribuidores, consumidores pelo tipo de danos que determinados bens e serviços causam no ambiente.
A conservação da natureza e a investigação científica que dela se ocupa são em geral alvos de fortes pressões e de uma corrente inoperância, a qual resulta de um financiamento muito esparso e repetidamente estrangulado, como o que se passou nos últimos anos no Instituto de Conservação da Natureza. Existem no entanto fortes financiamentos ligados à área da biotecnologia acompanhados de uma propaganda massiva e portadora da ideia de que todo o avanço biotecnológico é um passo para a salvação do mundo (doenças, fomes, desigualdades sociais, guerras, migrações). Tais financiamentos à investigação estão apoiados em dinheiros públicos e também num enorme investimento privado. E nada haveria de errado neste investimento privado se a rentabilização de tal investimento não entrasse em conflito aberto com o interesse comum em termos de conservação da natureza e saúde pública.
Exemplo disso é o recente caso do levantar da moratória aos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) na Europa. Esta problemática do cultivo e consumo de OGMs deve ser reflectiva em diferentes perspectivas: a conservação da natureza, a saúde pública, o princípio da precaução, os direitos do consumidor, a soberania alimentar e por fim, a própria democracia e o acesso à informação.
Conservação da Natureza. Poderá não ser possível a coexistência entre OGMs e biodiversidade natural. O aumento de densidade de espécies resistentes e agressivas ligadas à introdução de OGMs pode afectar espécies que evoluíram naturalmente ao longo de milhares de anos numa conjugação de condições particulares que não se voltarão a repetir, um património natural de valor incalculável. Note-se que mesmo as históricas introduções na Europa de espécies naturais de locais distantes, não tendo predadores ou competidores locais, mostraram fortes impactos na diversidade vegetal e animal. Muitos desses impactos não foram sustidos pelos métodos que se sucederam no controle de pragas. No caso dos OGMs, apesar de cada plantação estar limitada até ao tempo da sua safra, o impacto da sua presença no ecossistema pode permanecer e tornar-se cada vez maior. Quanto mais massificado e regular for o seu uso mais difícil poderá ser conter esse impacto. O aumento da densidade de plantas resistentes a determinados parasitas, competidores e predadores, coloca a vegetação natural numa situação nunca antes conhecida. É provável que pragas de insectos fiquem demasiado confinadas a determinadas áreas onde encontram a vegetação natural não resistente, com o presumível aumento do impacto negativo relativamente ao que teriam numa situação em que a praga se dispersa. Existe ainda a competição directa entre plantas, onde as naturais ficarão certamente em desvantagem. Conhecida a relação de dependência que existe entre plantas naturais e entre estas e determinados grupos de fauna, o desaparecimento de uma dada espécie natural pode, num efeito de cascata colocar o ecossistema numa série de alterações bruscas.
Saúde Pública, Princípio da Precaução e Direitos do Consumidor. A Agência Europeia para a Segurança Alimentar não realizou estudos relativos aos efeitos metabólicos da utilização de OGMs na alimentação. Preferiu antes aprovar um tipo de OGMs (neste caso, milho transgénico) aceitando como estudos “seguros” e credíveis, os realizados por uma das partes interessadas, as empresas que comercializam OGMs. Por exemplo, estudos realizados pela Monsanto referem a ausência de efeitos de OGMs (milho transgénico) a nível de fígado e rins em ratos, mas os mesmos dados trabalhados estatisticamente de outra forma por uma universidade francesa revelaram resultados bem diferentes. Seguindo o princípio da precaução, não deveria ter sido levantada a moratória aos OGMs na Europa sem que garantias concretas fossem apresentadas por grupos independentes sobre a ausência de efeitos dos OGMs em termos de saúde pública quer no seu cultivo (p.ex. alergias) quer no seu consumo (p.ex. problemas metabólicos). Os testes serão então feitos através do nosso próprio consumo em massa, sem o podermos evitar, uma vez que a união europeia não obrigou à rotulação de todos os produtos com OGMs e nem sequer proibiu a inclusão de OGMs nos produtos biológicos. A união europeia apenas impôs uma percentagem máxima por produto biológico, que é claramente insuficiente para quem não quer consumir OGMs de todo. Estas duas questões (a ausência de informação obrigatória em rótulos de qualquer produto contendo OGMs e a presença de OGMs em produtos biológicos) constituem um atentado contra os direitos do consumidor, não permitindo o direito de opção.
Soberania alimentar. Se por um lado a indústria ligada aos OGMs promete uma solução para a fome no mundo, por outro temos razão para desconfiar que nessa solução reside um outro grande problema, o da dependência. No caso dos povos que vivam directamente da agricultura para sobreviver, toda a sua vida futura poderá ficar nas mãos de umas poucas empresas que comercializam sementes geneticamente modificadas. Mesmo os agricultores com maior capacidade financeira poderão não suportar o impacto de uma competição desigual como o que está já a acontecer mesmo dentro do Hemisfério Norte. Existe a situação de agricultores que vêm os seus campos serem invadidos por OGMs mesmo contra a sua vontade (por propagação). Para além das novas plantas competirem com as culturas naturais, processos foram accionados contra agricultores que tinham OGMs nos seus campos sem os comprar. Perante tais formas de pressão é difícil exigir que os agricultores permaneçam resistentes a esta uniformização forçada. Por outro lado, os bancos de sementes existentes deparam-se com os problemas da preservação das sementes a longo prazo. Mesmo os bancos de sementes que utilizam já novas técnicas de preservação de tecidos biológicos irão defrontar-se com dois problemas reais. Como preservar o vastíssimo património natural que é a biodiversidade? Como fazer chegar as sementes a todos os que delas precisem? Se a utilização de OGMs vier a estar massificada, tal colocará em causa a soberania alimentar dos povos e não só, pois caso a alimentação dos povos fique nas mãos de umas poucas empresas, estas ditarão a sua vida, o seu futuro.
Democracia e acesso à informação. As aparentes consultas públicas foram realizadas ao abrigo da lei europeia que o exige, mas tiveram um eco muito reduzido entre os cidadãos e os resultados desfavoráveis relativamente aos OGMs apesar de constarem na internet não foram devidamente divulgados. Veja-se ainda a seguinte particularidade do processo de decisão. Mesmo os estados-membros votando maioritariamente contra a introdução de um dado OGM, basta que a maioria não atinja os dois terços, para que a autorização para a introdução possa prosseguir. E por incrível que pareça, as razões que a união europeia apontou para levantar a moratória ao cultivo de OGMs são basicamente económicas e ligadas à concorrência com os grandes mercados instalados, EUA e China. Relativamente a Portugal o cenário não é muito animador. O Ministério da Agricultura apenas tornou pública a informação sobre os campos com OGM (milho) demasiado tarde, muito depois da época de cultivo, o que é contrário ao exigido na transposição da directiva europeia. Mais, a divulgação é claramente insuficiente, não constando nesta a localização exacta das plantações de OGMs.
Actualmente discute-se sobre os caminhos que os cidadãos poderão empreender para conseguirem fazer frente à enorme pressão criada pelas grandes corporações, nomeadamente as ligadas aos OGMs, sobre os decisores políticos e a sociedade da informação. Entre os investigadores ligados às ciências biológicas e mais precisamente os que trabalham actualmente em biotecnologia, a pressão essa é ainda maior, dado o estrangulamento sofrido nos últimos anos na Europa relativamente aos fundos públicos para a ciência. Deparamo-nos assim numa encruzilhada que poderá ditar uma nova ordem mundial, talvez mais fragmentada do que a anterior na distribuição de poder entre nações dadas as novas emergentes economias como a China e a India, mas muito mais monolítica do ponto de vista de uma finança global. Esta última parece assumir um carácter decisor dos desígnios da própria humanidade, como se percebe pela presente tentativa de uniformização da própria alimentação.